sábado, 26 de abril de 2008

Avenida Antártida Argentina, 1355, Buenos Aires, DF.

Nesta singela direção que, como todo endereço, poderia conter qualquer elemento de um vasto conjunto de coisas endereçáveis - uma padaria, uma oficina, uma casa - se localiza a porta da Argentina. É lá que a existência das pessoas é confirmada e carimbada.

Quando se atravessa uma fronteira nacional ocorre um estranho fenômeno: se passa para um lugar onde sua existência não é mais tão segura como era antes, e é preciso que ela seja novamente confirmada, por um carimbo diferente daquele que se tinha, atestando sua existência do outro lado da linha. Algumas vezes as nações se agrupam e fazem acordos que aumentam a extensão da propriedade de existir burocraticamente, de modo que o atravessar das linhas já não é tão turbulento.

Pois neste endereço se devolve a existência burocrática aos passantes, temporários ou permanentes (ainda que passantes) da Argentina. Talvez "devolver" seja um termo muito forte, fiquemos com o "confirmar", que havia utilizado antes. Se confirma.
Numa quarta-feira, 23 de abril, cheguei neste endereço por volta das dez e meia da quente manhã. Peguei a senha 431, e fui para o setor "Radicaciones - Mercosur". Fiquei lá ao menos quarenta minutos até conseguir descobrir o número estavam chamando. Chamavam, pelo que me recordo, o número 123.

Ficaria por lá ao menos mais seis horas, tempo mais que suficiente para fazer algumas observações sobre tão pitoresco ambiente, intercaladas com aqueles pensamentos típicos de quando se está numa fila e o frequente ato de retirar o papel da senha, que se gurda no bolso não interno, para olhar pela milésima vez qual é o número nele inscrito. Parece que tal atitude pressupõe alguma propriedade milagrosa dos bolsos, que, ao alojar dentro de si um papel de senha, poderia mudar (cambiar, ia eu escrever sob influência castellana) tal numero.

As pessoas, os rostos. Naquela sala apinhada de gente, a expressão geral parecia ser um misto de esperança e tristeza. Talvez, na maioria, aquela esperança bastante contida, receosa, desconfiada, típica de uma vida de sofrimento. Para cada rosto, imaginava eu uma história. Certamente são todas muito diferentes, mas é fácil imaginar os pontos em comum da vida daqueles imigrantes, bolivianos e peruanos em sua maioria.

O rosto sofrido e as mãos calejadas denunciam uma vida de trabalho duro, provavelmente em condições sofríveis, em algum recanto esquecido da América Latina, ou alguma das metrópolis caóticas e desiguais. Os rostos, denunciando não só a esperança desconfiada, mostram também uma humildade-quase-medo, ou um medo mesmo, diante das mesas da burocracia argentina. Uma sensação de pequenez diante de um funcionário que vai ou não confirmar a existência das pessoas e permitir, finalmente, que trabalhem em busca de uma vida melhor. A dependência causa a submissão, o imigrante se encolhe, acoado pela burocracia.
É o medo do não-existir para os demais, para os que te autorizam. Ouvi uma funcinária dizer à um chinês (também há muitos imigrantes chineses aqui): "você não tem documento, como vou saber que você é você?".

A maioria eram famílias inteiras, com crianças. Para as crianças pequenas, os niños e niñas, aquilo tudo era uma diversão. Não sabem direito o que se passa e há outras crianças para brincar. Certamente cansam com tanta espera e eventualmente se aborrecem, mas a maioria estava correndo por lá, ou conversando animadamente, na medida em que crianças pequenas e bebês conversam entre eles. O sorriso inocente, daqueles que não conhecem o mundo, pareciam ter um efeito sobre seus pais, e sobre eu mesmo, observando tudo aquilo. A expressão pálida, endurecida e preenchida pela esperança desconfiada, no rosto de um pai ou mãe, adquiria os traços, agora, de uma inocência tímida, que ainda resta no fundo do coração de um pai ou mãe sensibilizado pelo filho ou filha.

Uma figura em particular me chamou muito atenção. Não sei ao certo sua nacionalidade, imagino que era boliviano ou peruano. Fora as pessoas destes países havia muitos chineses, (no setor extra-mercosul), uma comunidade mórmon, e, no meio de tudo aquilo, um solitário judeu, com seu chapéu, sobretudo e barba, distoando na paisagem.
Enfim, a figura estava bem vestida, embora de maneira simples. Camisa azul esverdeada, calça cinza. As botas de trabalhador confirmavam o que se via nas mãos e no rosto, muito judiado pelo sol e pelos dramas da população humilde trabalhadora. A expressão era de tranquilidade e a humildade que tinha diante dos burocratas não parecia se converter em medo. Mantinha um sorriso, não sei se de uma esperança ainda ou já não desconfiada ou se para ele as coisas já estavam se encaminhado bem. As costas arqueadas, o cabelo branco, as rugas e o andar lento denunciavam uma idade avançada, não só pelo tempo, mas também, e talvez principalmente, pela labuta. Ao mesmo tempo me pareceu uma pessoas com educação, mas não sei porque pensei isso, talvez por não demonstrar medo diante da burocracia.

É um bom contato com a realidade latino americana, que muitas vezes passa distante de um estudante de classe média. E ver que para esses imigrantes, países como Brasil, Argentina e Chile oferece condições melhores que as dos seus países clarifica ainda mais as mazelas da América Latina.
Apenas impressões de seis horas de espera.



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